Quais são os números do estupro no Brasil?
Aproximadamente 50 mil pessoas são estupradas no Brasil todos os anos. Assustador, não é? Mas a realidade é ainda mais grave. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estima que os dados oficiais representam apenas 10% dos casos ocorridos, ou seja, o número real de pessoas estupradas no país anualmente é de cerca de meio milhão.
Apesar do estupro não atingir apenas mulheres, O IPEA apurou que 88,5% das vítimas são do sexo feminino. Identificou ainda que 51% das vítimas são da cor preta ou parda e 46% não possuem ensino fundamental. (Dados de 2014). Sabe-se ainda, que 67% dos casos de violência sexual contra mulheres são cometidos por parentes próximos ou conhecidos da família, 70% das vítimas são crianças e adolescentes e 15% dos casos envolve dois ou mais estupradores. Quando se trata de adultos, os estupros ocorrem na sua maioria dentro de casas e casamentos. Menos comum, mas não raro, são os estupros de recém-nascidos.
O estupro está presente em todos os lugares, inclusive nas universidades, instituições religiosas, relacionamentos amorosos como namoros e casamentos e principalmente nos lares. Seja como sujeito ativo ou passivo, os crimes de violência sexual contemplam desde analfabetos, até políticos, empresários e artistas.
Por que as vítimas não denunciam seus agressores?
As razões pelas quais as vítimas não denunciam o estupro são diversas. Incluem a vergonha, medo da reação da família ou retaliação do agressor, sentimento de culpa, dor, falta de apoio emocional e a incerteza de que o agressor pagará pelo crime. Sim, as vítimas de estupro, ao buscar por justiça, encontram uma série de barreiras e quase sempre os agressores ficam impunes.
São frequentes os relatos de vítimas de violência sexual que foram até uma delegacia para denunciar o crime e foram bombardeadas com perguntas quanto a sua conduta moral. É como se houvesse uma desconfiança por parte das autoridades de que o estupro foi provocado pela vítima. Afinal, por que uma saia tão curta? Um decote tão profundo? Consumiu álcool? Sozinha de madrugada? Tem certeza de que não consentiu? Será que ele não entendeu o seu “não” como um “sim”? Mesmo nas delegacias das mulheres há evidências do falto de preparado para acolhimento dos casos de estupro.
Trata-se da cultura do estupro, que consiste em duvidar das pessoas quando elas relatam uma violência e relativizar a importância do relato em função do passado da vítima ou de sua vida sexual. Se a pessoa já tinha um histórico de muitos relacionamentos amorosos é como se não fosse necessário pedir permissão. Mas registrar a queixa é só a primeira barreira, ainda existe um longo caminho até os tribunais.
Para que o caso tenha continuidade jurídica, a vítima deverá ir ao IML e fazer o exame médico. Durante o exame, o médico legista irá buscar provas no corpo da vítima que possam incriminar o agressor, como marcas de briga corporal, machucados e sinais de esperma. É importante salientar que todos estes procedimentos ocorrem poucas horas depois do crime. Para que o caso seja encaminhado aos tribunais, é necessário a aprovação de promotores e juízes, e esta decisão é tomada com base na evidencia de provas. Portanto, se a vítima preferiu não reagir ao estupro para evitar ser espancada, teve esta reação involuntária diante do choque do ataque ou mesmo foi alcoolizada ou drogada, terá menos chances de ter seu caso julgado, pois, as evidências concretas são menores. O mesmo ocorre quando o estuprador é o próprio marido ou uma pessoa com quem a vítima se relacionava.
E como ficam as crianças e adolescentes?
Se para uma pessoa adulta o estupro já traz danos psicológicos de grande proporção, um pouco de empatia nos permite refletir sobre o caso de crianças e adolescentes. É triste constatar que muitas adolescentes, ao contarem para um familiar de sua confiança sobre sua condição de vítima de violência sexual, são desacreditas ou consideradas culpadas. Novamente está presente a percepção de que a vítima provoca o estupro. Isso ocorre especialmente quando o agressor é um familiar ou um conhecido da família. No caso de crianças, a omissão pode ser ainda pior. Não raros são os casos em que o estuprador é o próprio pai ou padrasto e a mãe ao ser alertada pela criança passa a ser conivente com os abusos. A vítima, seja criança ou adolescente, na sua condição de vulnerável, passa a sofrer em silêncio e aguardar a próxima investida. Esta situação pode se estender por anos, até que algum vizinho ou parente próximo, perceba o caso e denuncie. Até lá, os danos psicológicos são imensuráveis.
Afinal, o que caracteriza o estupro?
Se reuníssemos um grupo de pessoas aleatoriamente e solicitássemos que descrevessem com suas palavras o que entendem por estupro, é muito provável que expressões como o “uso da força para realizar ato sexual” fossem citadas. Sim, usar de força para ter relação sexual com uma pessoa, é estupro. Mas, o que poucos sabem, é que o crime de estupro é muito mais abrangente.
De acordo com o Código Penal (art. 213), o estupro consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Ato libidinoso é um termo generalíssimo que corresponde a todo e qualquer ato destinado à satisfação da libido (desejo sexual), razão pela qual compreende a própria conjunção carnal como uma de suas possíveis formas, mas não unicamente. O ato libidinoso tem de ser praticado pela, com ou sobre a vítima coagida, portanto, exige contato físico. Alguns exemplos são a pratica de sexo oral, a masturbação, o beijo lascivo, apalpar e abraçar ou simplesmente tocar partes do corpo humano, despir alguém, entre outras.
Consentimento é fundamental para diferenciar sexo de estupro. Independente da pessoa estar embriagada ou a relação sexual ter iniciado de forma consensual, quando uma das partes diz “não”, este “não” deve ser respeitado e o ato interrompido. Forçar a relação é uma violência e caracteriza estupro.
Quais as penalidades previstas em lei para estupradores?
Aos estupradores, o código penal brasileiro estabelece as seguintes penalidades:
Quais são as ações emergenciais após o estupro?
Apesar de toda humilhação e dor, é necessário reagir e buscar ajuda.
O Ministério da Saúde orienta que toda vítima de estupro deve buscar suporte psicológico e de saúde no SUS. Ao chegar na unidade de saúde, a vítima deve ser acolhida por uma equipe multidisciplinar de médicos, enfermeiros, assistente social, psicólogo farmacêutico e técnico em enfermagem e ter acessos a serviços como atendimento psicológico, entrega da pílula de emergência para evitar gravidez indesejada e um coquetel anti-HIV. Para a efetividade dos procedimentos, é importante que o a vítima procure o serviço de saúde o mais rápido possível.
Sabe-se que prática acaba sendo um pouco diferente. Vítimas diante da falta de informação, vergonha e do desejo de esquecer todo o trauma pelo qual passaram, costumam guardar segredo sobre o estupro. Muitas mulheres procuram o serviço de saúde somente quando percebem que estão grávidas.
Fui estuprada e engravidei. É possível o aborto?
A lei nº 2848 de 07 de dezembro de 1940 permite a prática de aborto nos casos de estupro, desde que haja consentimento da gestante ou em caso de menor, do seu representante legal. É necessário ainda que o tempo gestacional não seja superior a 20 semanas.
O procedimento de aborto pode ser realizado por hospitais do SUS e não é necessário apresentar Boletim de Ocorrência Policial, laudo do IML (corpo de delito) ou de autorização do Ministério Público. O documento mais importante é o prontuário médico, que deverá ser acompanhado pelo consentimento escrito da mulher (ou representante legal) que optar pelo aborto. Entretanto, caso a vítima da violência seja menor de idade, é obrigação da equipe médica comunicar a violência ao Ministério Público. Nos casos de gravidez de adolescentes, a equipe médica deve respeitar a vontade da gestante, mesmo que esta seja contrária à vontade dos representantes legais. É necessário entrar em contato com o Conselho Tutelar para tratar da questão.
Mesmo com o amparo da lei, muitas mulheres encontram dificuldades para realizar o procedimento. Neste caso, cabe registrar boletins de ocorrência contra médicos ou instituições ou obter auxílio de um advogado que busque medidas judiciais cabíveis para obrigar a instituição a realizar o aborto.
Quem é o estuprador? Perfil psicológico do estuprador
Quem nunca se perguntou sobre os motivos que levam uma pessoa a cometer um crime tão repulsivo como o estupro? Existe um fator genético? Trata-se de um desvio moral? Transtorno de personalidade? São psicopatas? São influenciados por uma sociedade machista?
Pensar que o estuprador é “doente” não justifica as agressões, mas traz um alento. Porém, na contramão deste raciocínio, as pesquisas apontam que somente uma minoria dos estupradores têm algum tipo de transtorno de personalidade, como por exemplo a psicopatia. Infelizmente ainda não existe um consenso entre os estudiosos sobre os motivos que levam uma pessoa a estuprar. Alguns defendem que existe relação com uma infância violenta, outros, que existem fatores genéticos e há ainda os que acreditam que o estupro é fruto da cultura de desigualdade de gêneros. A verdade é que todas oferecem justificativas parciais.
A boa notícia é que os estudos sobre o comportamento dos estupradores têm evoluído e contribuído para clarificar muitos crimes.
Ileana Casoy é criminologista e escritora brasileira e classifica os estupradores em 5 tipos:
Os “dominadores”: não escondem a identidade, combinam agressões verbais e físicas e escolhem locais seguros para atacar. O ato sexual é a expressão da sua virilidade e o uso da violência é para que a mulher o obedeça, assumindo papel de submissão. Caso a mulher resista, tende a aumentar a violência. Convivem bem na sociedade e assumem uma postura de “machão”.
O “romântico”: tende a procurar as mesmas vítimas e busca com o crime elevar a sua autoestima e sentir-se importante. Utiliza o mínimo de força, somente o suficiente para imobilizar a vítima. No seu entendimento, o ato foi consentido pela vítima. É o único tipo com o qual a vítima pode tentar negociar não ser estuprada. Os casos investigados levam a crer que geralmente são homens solteiros, de poucos amigos, e que procuram dar ao crime características de um encontro.
Os “vingadores”: têm por principal objetivo machucar a vítima. Segundo Ilana “não é sexo o que eles fazem, é raiva”. É provável que seja um homem que sofreu, ou pelo menos imagina ter sofrido alguma injustiça de uma mulher. Os ataques são pouco planejados.
O “sádico’: Alguns apresentam transtornos psiquiátricos e têm potencial para se tornar um serial killer. Comete crimes de forma planejada e quanto maior for a agressão, maior é sua satisfação. Provoca dor física e psicológica na vítima. Perspicaz para escapar da polícia e dificilmente tem antecedentes criminais.
O “oportunista”: cometem estupro de forma não planejada. O objetivo do crime é apenas se apropriar de objetos de valor, mas o criminoso enxerga na situação indefesa da mulher a oportunidade para o abuso sexual. Usam o mínimo de força física e podem embriagar ou drogar a vítima torná-la mais vulnerável.
As sequelas do estupro
É possível que o dano físico causado pelo estupro seja menos significativo do que o sofrimento emocional. É verdade que cada pessoa absorve o trauma de uma forma diferente, uma vez que as experiências de vida, crenças e valores são únicos. Mas de forma geral, o estupro desencadeia complexas e sérias reações emocionais na vítima. São comuns os distúrbios do sono e pesadelos repetindo a cena do crime, autoacusações, medo de ser assassinada, sentimentos de degradação e perda da autoestima, ansiedade, depressão, temor de andar ou ficar só, medo das pessoas atrás delas e de multidões, medo de ficar dentro de casa ou fora dela (dependendo de onde ocorreu o estupro), temores sexuais, síndrome do pânico, problemas com relacionamentos íntimos, podendo evoluir para tendências suicidas.
Para a melhora da qualidade de vida e a recuperação da autoestima da vítima, o acompanhamento terapêutico e o apoio da família são fundamentais. A intervenção psicológica visa a promoção de resiliência, o resgate da autonomia e o restabelecimento da confiança na relação com o outro, através da elaboração e ressignificação do trauma e dos sentimentos associados a ele, permitindo que novos objetivos e perspectivas de vida sejam estabelecidos.
Como tornar o estupro um problema do passado?
Reduzir a incidência de crimes de estupro exige ações combinadas.
É imprescindível que haja maior habilidade por parte de policiais e do judiciário. O primeiro passo é acolher e ouvir com atenção as vítimas que tiveram a coragem de denunciar. Agentes públicos precisam ser treinados para lidar de forma adequada com vítimas de violência sexual, incentivando desta forma, que outras quebrem o silêncio. Quebrar o silêncio é o primeiro sinal de alerta para os estupradores. O segundo passo, é o empenho das autoridades nas investigações e julgamentos dos casos. Uma vez realizadas as denúncias, o processo precisa evoluir e os criminosos devem ser penalizados. O término da impunidade é um golpe poderoso contra os agressores.
Uma grande ajuda também pode vir da educação, tanto a oferecida pelas escolas como aquela que se aprende em casa.
As instituições de ensino podem contribuir com a inclusão dos temas de educação sexual e igualdade de gêneros nos seus currículos. Já a família detém responsabilidade ainda maior, uma vez que é papel dela, transferir valores, estabelecer limites e ensinar o significado da palavra respeito. É necessário dizer basta a uma educação que prega que um gênero possui mais direitos do que o outro. É necessário parar de formar estupradores.
Como foi escrever esta matéria?
Sou mulher e sou mãe. Escrever esta matéria foi um grande desafio. Muitos foram os artigos pesquisados e estudados. Alguns deles cheios de relatos de vítimas de estupro, com os quais sensibilizei-me. Como mulher, solidária as vítimas de violência sexual do sexo feminino, senti-me ferida na minha dignidade. Como mãe, coloquei-me a pensar na vulnerabilidade e sofrimento de crianças vítimas de estupro. Por vezes sofri, indignei-me, pensei em mudar de tema, digitei frases incompletas e por fim retomei. Não foi fácil. Foram dias em que tive que trabalhar com minhas próprias emoções.
Tenho esperanças que a impunidade deixe de ser uma marca do estupro. Anseio também por uma sociedade menos machista. Que possamos ensinar aos nossos filhos que todo ser humano deve ser respeitado, independente das condições e circunstancias.