Cresci em Pato Branco numa época muito diferente da atual, principalmente no jeito das meninas crescerem. Eu não vestia muito cor de rosa naquela época, minhas roupas eram verdes, azuis, pretas, vermelhas, brancas (muita roupa branca), roxas, amarelas e rosas. E as roupas das minhas amigas eram coloridas também. Não usávamos sapato com salto, só se fosse brincadeira com o sapato da mãe, da tia, da vó. Nem existia sapato de salto para meninas. Não passava pela cabeça de nenhum adulto ao meu redor sapatos de salto para crianças, e isso é muito importante. Ninguém queria colocar um sapato de salto numa menina: meninas brincam, correm, sobem em árvore. Saltos podem machucar, causar acidentes. Esse pensamento geral, "meninas não usam sapato de salto" é um "pequeno detalhe" muito importante para pensarmos a vida das meninas naquela época e hoje. É uma das pequenas ideias, que juntas, formavam o senso comum do que a vida de uma menina deveria ser.
Nem eu ia querer um salto alto, como eu faria para subir no pé de ameixa do inverno do quintal da minha avó da cidade? O que eu faria com um salto alto na propriedade da minha avó na colônia, se eu gostava de arrancar mandioca e colher laranja no pé? Provavelmente uma meia-calça tenha alguma utilidade para roubar salame num porão, mas desconfio que não é vestindo que eu a usaria para essa finalidade.
Além de serem coisas que atrapalhavam essa vida típica de criança que os adultos ao meu redor planejaram pra mim, tudo isso eram símbolos de maturidade para as mulheres. Existia até um ritual em que o pai de uma menina, no aniversário de 15 anos dela, trocava uma sapatilha por um salto alto: agora ela era mulher. Não ia mais subir em árvore, correr, brincar, roubar salame: agora ela iria namorar.
Eu que cresci desse jeito mais livre tinha uma dificuldade com esses símbolos de maturidade e feminilidade. Eu não sabia direito que cabelo usar em que ocasião, mas eu até gostava de algumas coisas, principalmente batom, brinco e esmalte colorido. Achava bonito um batom da Avon, "Vinho Disco" que tinha um tom avermelhado com bastante brilho... usei por anos e acho que pararam de fazer, nunca mais achei. Usar batom perdeu a graça. E os esmaltes coloridos, azul, "beterraba", verde. Eu gostava. Brincos engraçadinhos e coloridos tenho até hoje. Sempre achei tudo divertido, e era uma brincadeira, um passatempo. Mas não era brincadeira pro resto do pessoal.
Ao contrário da época em que achavam bom que eu nem soubesse desses paranauê porque mais atrapalhavam que ajudavam, agora eu tinha obrigação de conhecer tudo isso: porque agora essas coisas todas iriam me ajudar. Me ajudar a ser vista como mulher. Me ajudar a arranjar um namorado. Me ajudar a não ficar pra titia. Quem é que quer ficar pra titia, Sharon? Ninguém. Então usa maquiagem, arruma o cabelo, bota perfume, pinta a unha, se enfeite, se disfarce. Seja uma mulher como essa, como aquela, seja desse jeito. Porque você é uma mulher. E mulher tem que ser assim, como a gente está falando que mulher é. Parece até que toda aquela liberdade de viver a vida com roupas divertidas e calçados confortáveis foi permitida por pena do que me fariam passar depois. E hoje eu vejo que muitas meninas não tem nem essa folga na vida. É bebê sufocando com pedra de strass que caiu da chupeta. É torcer o pé no salto alto brincando de pega-pega no ensino fundamental. É preocupação com peso aos 10 anos de idade. É tortura desde pequeninha, pra ver se aceita melhor. Porque se criar livre, já sabe. "Vão querer se mandar quando crescerem".
Eu não tinha percebido esse paradoxo no senso comum entre como deve viver uma menina e como deve viver uma mulher. Não foi por rebeldia que eu fui me livrando um pouco dessas coisas. Comecei a achar tudo um pouco chato, cansativo. Adulta, meu tempo de dormir, ler, assistir TV foi ficando mais escasso. Acordar um pouco antes para me maquiar pra trabalhar? Deixar de ler ou jogar no celular no sábado à tarde pra fazer unha? Gastar com batom e não com chocolate? Ir no salão e não no Posto Guarani tomar café?
Não, obrigada. Não sou obrigada.
Eu comecei a viver assim sem pensar muito nisso, só deixando de lado mesmo. Mas aí começaram a me achar estranha, "desleixada" e "desarrumada". Comecei a perceber umas críticas maldosas, umas alfinetadas ardidas. Os representantes do senso comum que me cercam reagiram. Porque pra eles eu não estava fazendo só porque gostava, aquilo tudo eram obrigações minhas. Era o senso comum, a cultura onde eu vivo, que obriga as mulheres a ter tempo, a se importar, a pensar na maquiagem, na unha, no salto.
Que coisa mais engraçada. Enquanto eu crescia cuidavam para que eu fosse livre. Quando eu cresço, cuidam para que eu esteja presa. Como se não bastassem as obrigações materiais, que envolvem o meu sustento, o sustento do meu filho, o cotidiano da minha vida. Eu sou obrigada também a saber e fazer tudo aquilo que as pessoas acham que fica bonito numa mulher. No meu corpo, nas minhas roupas, no meu cabelo: sou obrigada a não parecer eu. Querem me prender fora de mim. Tão querendo me empacotar. Me empacotar de mulher. Me empacotar de bonita. Me empacotar de tendência. Me empacotar com tanta coisa que eu não tenho nem tempo de decidir se eu quero ou não: use agora, ano que vem você vai precisar de um pacote diferente!
Todas nós mulheres somos obrigadas a usar pacotes para não parecermos "cansadas", "velhas", "infelizes", "deprimidas", "feias", "doentes", "gordas", "fora de peso", "barrigudas". Porque não somos como outras pessoas que tem permissão para estarem assim, cansados, velhos, infelizes, deprimidos, feios, doentes, gordos, fora de peso, barrigudos. Não, somos mulheres, não é permitido que sejamos nada além de um enfeite para o mundo! Flores! Arco-íris! Estrelas! Princesas! Lindas! Divas! Gostosa! Tesuda! Tá querendo!
Quando você se recusa a se empacotar como uma mulher deve, você declara na sua própria embalagem que não considera importante enfeitar a vida dos outros. Eles que vão encontrar beleza nas coisas, não nas pessoas! E a reação negativa e violenta dos outros confirmam o poder que você tem sobre si mesma. É você quem manda, é você quem assume. Eles podem criticar, sugerir, importunar e até te machucar para empacotar você com o pacote DELES. Mas quem decide mesmo é você.
No seu país, na sua revista, no seu conteúdo, no seu corpo, na sua ditadura, quem manda é você. Quando a gente encontra quem a gente é, a moda é o jeito de ser da gente. É natural, orgânico, vem de dentro. E o que tá do lado de fora se adapta às fronteiras que demarcamos. Usamos as coisas sem medo de errar. Errado é quem acha que tem algum poder de empacotar outra pessoa. Quem me embala sou eu... e o rock'n'roll!
Sharon Caleffi é uma patobranquense do inverno, ama os dias frios desde que tenham sol, militante feminista, abre seu coração para a Revista MODAA com muita crítica e bom humor.