25/11 | Mães Plurais - Autismo

Por:
Revista MODAA
A Revista Modaa entrevistou muitas mães para mostrar suas experiências com a maternidade e provar que somos mais que simples mães, mulheres, companheiras e empresárias, nós somos plurais. Nesta matéria, vamos conferir a história da Stela que têm três filhos, o caçula Joaquim e os gêmeos Francisco e Antônia, diagnosticados com autismo.
 
"Tive trombose aos 28 anos, após voltar de uma viagem. Internação de emergência, 8 dias no hospital, 9 meses de tratamento com meias de compressão e anticoagulante via oral. Ouvi que jamais engravidaria. Investiguei os motivos e descobri que tenho um tipo de trombofilia, deficiência de proteína S.
 
Na semana do meu aniversário de 33 anos engravidei. Tinha acabado de descobrir um problema na tireóide e parei com a medicação para investigar melhor. Seria mais uma dificuldade para engravidar, além da idade e da trombofilia. Ainda assim, engravidei de gêmeos. Descobrir-me grávida de um casal de gêmeos, significou a realização de vários sonhos meus de uma única vez, o de ser mãe, ter gêmeos e (meu Deus), ser um casal.
       
Foram 3 episódios de sangramento. Passei a ter candidíase de repetição em virtude dos hormônios que tomava e assim foi até o parto. Durante a gestação, fazia exames de sangue mensais, além dos típicos de pré--natal mais 3 exames de curva glicêmica. Inicialmente, em virtude do descolamento de saco gestacional e dos sangramentos, fazia ultrassom a cada semana, depois 15 dias, aí mensalmente. No final da gestação, era o procedimento mais doloroso pelo qual passava. Além de ir ao posto de saúde todas as tardes, por uma semana para tomar ferro intravenoso por duas horas para tratar uma anemia e ganhar peso. Também tive que tomar duas injeções de corticóides por volta de 30 semanas. Aguentei firme até 37+1 tomava relaxante muscular e remédio para dor raramente porque não queria meus bebês dopados, aguentava no peito e na raça.
       
Usava hormônios, duas injeções de anticoagulantes diariamente, controlava hipotireodismo com medicação, tratava a candidíase de repetição que me deixava em paz por no máximo 2 ou 3 semanas, tomava vitaminas, remédio para os fortes enjôos e vômitos até o 5 mês que deram lugar a azia e refluxo. Sofria com intestino preso mesmo com alimentação equilibrada rica em frutas, legumes e verduras.
     
A partir do 6 mês o repouso tornou-se obrigatório e indispensável e o médico sugeriu dobrar a dose hormonal, o que me fazia sentir mais mal estar físico e irritabilidade. Minhas taxas hormonais eram astronômicas. Era picada constantemente e tinha os braços roxos pelas injeções, pelos acessos e coletas de sangue para exame.
     
Quando fechei 37+1 o médico marcou a cesária, nasceram meus filhos, lindos, enormes e saudáveis. A noite minha filha teve uma parada respiratória e foi o meu primeiro susto como mãe, graças a Deus não foi nada. Alta e todos para casa, leite não veio como esperado, bebês tomavam complemento no copo, meu filho começou a ter icterícia e ficou no limite para internação que acabou por não ser necessária. Até o terceiro mês de vida deles, não tínhamos casa fixa e passávamos ora na casa da sogra, ora na casa da minha mãe até viemos para nossa casa dois dias após eles completarem 3 meses de vida. A partir daí comecei a cuidar sozinha dos gêmeos, meu marido trabalhava o dia todo e estudava a noite. Eu tinha dois bebês e uma casa cheia de caixas para arrumar. Era exaustivo e desgastante, levou alguns meses até conseguir desfazer a última caixa. Aprendi sobre marcos de desenvolvimento, picos de crescimento, sobre desenvolvimento infantil, depois sobre introdução alimentar, até que engravidei novamente quando os bebês estavam com 9 meses. Fui tomada de média e inseguranças em virtude da gestação anterior traumática. Poucos sustos, algumas preocupações, uso de duas injeções diárias de anticoagulante, mas correu tudo bem, fisicamente. 
     
Com aproximadamente 1 ano, as crianças começaram apresentar atrasos cognitivos e de linguagem bem sutis, em virtude da gemelaridade, nada aparentemente preocupante. Os meses foram passando e conforme eu ia ficando mais lenta, mais cansada com as tarefas diárias, as demandas emocionais aumentaram e as crianças começaram a sentir a diferença na mamãe. Ao perceber que algo estava errado com aquele colo que conheciam tão bem. Foi aí que entrou a figura da avó materna que veio para auxiliar nas tarefas do dia quanto no cuidado com os pequenos. Os atrasos cognitivos e de linguagem se tornaram mais significativos e quando completaram 1 ano e 6 meses nasceu o irmãozinho, sadio, lindo e forte. Dissabores do parto desconsiderados em virtude da seriedade de voltar para casa e enfrentar rejeição dos filhos maiores em relação a mim e ao irmãozinho. Ainda não conseguia pegá-los no colo, eu precisava me recuperar rápido da cesária. Via meus filhos chorosos e apáticos. Nada os fazia feliz, nada os fazia brincar, nada os fazia sorrir. Procurei ajuda profissional, neuropediatra, psicóloga, fonoaudióloga e com o bebê de 30 dias nos braços partimos para terapias. Era sofrimento puro, cansaço, choro e secreção. Os pequenos não aceitavam. O dinheiro ficou mais curto. Horários mais apertados, interrompemos a terapia e eu comecei a ler não apenas sobre desenvolvimento infantil típico, mas sobre formas de ajudar no desenvolvimento de linguagem e cognição, disciplina positiva, educação não violenta e principalmente dificuldades de crianças neurotípicas e as técnicas de terapia. Investir tempo e energia em brinquedos sensoriais, em técnicas de contato visual, atendimento pelo nome, entrega de objetos. O sono perturbado me fez investir em massagens antes de dormir, ler sobre aromaterapia e tentar até homeopatia. O meu tempo era e ainda é totalmente voltado aos meus 3 filhos. Em manter minha sanidade, em buscar tratamentos para um transtorno sem diagnóstico. Em busca profissionais das mais diversas áreas para ajudar, mantendo contato com uma nutricionista, um psicólogo infantil, além de seguir os conselhos de vários profissionais que gratuitamente ajudam via internet.
     
Recentemente conseguimos terapia pelo plano, após 6 meses de insistência, pedidos e reuniões. Começa agora uma nova etapa e eu me preparei, mas ainda assustada, com gêmeos de 2 anos e um bebê de 6 meses que dependem da minha sanidade mental, do meu empenho em superar todas as dificuldades e principalmente, Demandam muito colo e muito carinho de mãe.
       
A pergunta que eu mais respondo na maternidade atípica é de como descobri o autismo dos meus filhos. Como a maioria das mães de autistas, descobri bem cedo, fui desacreditada, desabonadora como mãe, tanto por amigos, familiares e profissionais. 
     
Foi aí que resolvi me dedicar em ser uma supermãe, ler e aprender tudo o que fosse possível sobre a gestação, desde alimentação, desenvolvimento do feto, a importância de conversar, cantar, ler e ouvir música clássica para os bebês ainda no ventre, a importância do toque e tudo mais que pudesse contribuir para evitar doenças, malformações, prematuridade e promover um desenvolvimento perfeito em todas as fases até o nascimento, e esse gosto por ler e conhecer, se tornou um hábito, ressurgiu uma antiga paixão, a neurociência. Depois que nasceram meus bebês, eu me entreguei por inteiro à maternidade Ser mãe era o sonho da minha vida e isso me cabia tão bem, não tinha noite em claro que não valesse a pena, olhando aqueles dois sorrisos banguelas pela manhã. Eu estava em êxtase. Tinha a família de ‘comercial de margarina’ que eu sempre sonhei. Eu era a mãe chata com alimentação, com estímulos e descobri a criação com apego seguro e, isso, fez todo sentido pra mim, o poder do colo, do aconchego, da presença materna e dos estímulos que só os cuidados de uma mãe poderiam propiciar.
       
Quando descobri a segunda gravidez, foi um momento bastante conturbado. Logo meus bebês completaram um ano e percebi que não respondiam de forma proporcional aos estímulos dados. Me senti péssima mãe, li que a gemelaridade justificava um certo atraso de desenvolvimento e em consulta com pediatra, aliava a isso a chegada de um novo membro na família, justificava uma certa apatia. Ainda assim, pra tirar a pulguinha atrás da orelha, pedi socorro à minha mãe, que de longe já havia me dito que certos atrasos era “só ensinar”. Honestamente, a essa altura, ouvindo as críticas ao meu modo de educar a criar, mesmo com todo respaldo científico que embasou cada decisão, eu me senti fracassada como mãe.
     
Notei as primeiras regressões quando a barriga já estava grandinha, me senti, além de tudo, culpada, eu era a causadora do sofrimento dos meus filhos.
 
Minha mãe veio de longe para me ajudar com as crianças, quem melhor que a avó materna para enchê-los de mimos e amor, para brincar e estimular como eles mereciam e da melhor forma possível, já que eu me sentia fracassando, miseravelmente nisso. Então, a vovó chegou e notou algumas diferenças, um dia ouvi ela dizer “isso não tá normal”.
     
Quando nasceu meu terceiro filho, fiquei dois dias internada, ao voltar, recebi um abraço do meu filho e depois fui, terminantemente, ignorada. Ambos deixaram de me olhar, já não atendiam quando eu os chamava antes, agora, era só choro. 
     
Descontente com tudo isso, contrariando conselhos, críticas e palpites de que aquele comportamento era esperado, de que era falta de escola, de que eles não eram estimulados e todo tipo de coisa, antes de acabar meu resguardo eu já estava no consultório de um neuropediatra. Lá minhas suspeitas eram, finalmente, ouvidas e justificadas, ao mesmo tempo que me causou alívio ouvir que eu não estava enlouquecendo, muito menos falhando como mãe, foi um golpe doloroso a suspeita de que havia algo de “errado”.
     
Comecei a ler, ver vídeos de madrugada, a buscar respostas. Foi quando li, pela primeira vez a frase “criança não desaprende” e pensei na perda de habilidades, no atraso da fala e quando vi um vídeo de uma criança “flappando”, reconheci minha filha ali, o é equino ficou cada vez mais evidente e mais frequente, e tudo apontava para o autismo.
     
Começou uma luta para conseguir terapias para investigação da suspeita de autismo nos gêmeos. Toda família mobilizada, papai, mamãe, vovó e o maninho, ainda um bebê de colo. Íamos todos aos consultórios e clínicas. Em apenas 4 sessões, já foi possível fazer um relatório que serviria para confirmar aquilo de que eu, como mãe, já tinha certeza, os gêmeos são autistas.
     
Apesar de eu já estar preparada, ouvir o diagnóstico foi um soco no estômago e um estrangulamento simultâneos, foi doloroso, ninguém está preparado para a maternidade atípica, aliás, ninguém sabe que isso tem nome.
     
Passei pelos processos parecidos com os do luto todos ao mesmo tempo, se alternando, e eu chorei no banho e nas madrugadas e quanto mais eu lia, mais aprendia, participava de lives e cursos gratuitos até que resolvi fazer um curso e foi aí que ao aprender mais sobre autismo, sobre a luta de outras mães, conhecer profissionais e autistas eu abri meus olhos para um novo horizonte.
     
O luto pelo qual passei não foi a morte dos meus filhos, foi a morte das minhas expectativas enquanto mãe, mas como fênix, ressurgi melhor, como um ser humano que não romantiza a maternidade seja ela típica ou neuro diversa. E eu deixei de ter medo de não conseguir e tudo começou a fazer mais sentido pra mim quando comecei a ver quantos autistas existem por aí, o quanto eles querem ser vistos e ouvidos, o quanto eles têm a oferecer e a mostrar um universo de conhecimento.
     
Descobrir o Autismo nos meus dois filhos me fez mais sensível e mais forte de um modo que eu sequer sabia ser possível. Senti o verdadeiro amor incondicional, que nada espera e tudo aceita, afinal, filhos neurodiversos não correspondem como queremos, mas de modo como eles são capazes, trabalhei dentro de mim preconceitos e capacitismo.
     
Não sou uma "mãe azul”, não sou uma super mulher, uma guerreira, não sou uma “escolhida por Deus”, nada disso! Muito menos sou uma coitada, ou culpada, não há culpa, ou estou sendo “castigada”, como apregoam algumas pessoas. 
     
Sou uma mãe, cujas lutas só outra mãe de autista entende, temos lutas, desafios que uma maternidade típica não compreende, não vive, não sente. Isso não nos torna dignas de piedade, apenas nos torna, muitas vezes exaustas pela vigilância constante, pelas cobranças, pelo abandono, muitas vezes de companheiros, amigos, familiares, por uma sociedade que não sabe lidar com o diferente, que marginaliza e exclui e embora cansadas, seguimos, porque não há outra opção senão seguir e isso, qualquer mulher que se torna mãe pode entender.
     
Existe vida após diagnóstico, esqueça tudo que se sabe sobre maternidade e se reconstrua, se empodere e seja você, mãe, a maior especialista em seus filhos, a vida é cheia de dificuldades, mas também cheia de alegrias com o menor dos avanços. 
     
Crianças autistas são apenas crianças, não são anjos, não são seres extraordinários, esses conceitos desumanizam e pesam. 
   
E se você conhece ou tem um parente autista, aproxime-se, ouça, aprenda, pergunte, ajude, seja rede de apoio, seja aldeia. O Autismo é um universo que precisa e merece ser conhecido, naturalizado, respeitado e sobretudo ouvido. Com toda certeza, você se tornará alguém melhor, esse é o primeiro passo para uma sociedade mais digna e evoluída."

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